Mesmo não estando formalmente catalogada no Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM), a síndrome do sobrevivente já é considerada uma patologia bastante comum. Ela costuma aparecer quando uma pessoa passa por um grande trauma e sobrevive.
A síndrome do sobrevivente costuma ser mais traumática para aqueles que perdem uma pessoa muito próxima. Nesse período de pandemia causada pelo novo Coronavírus (Covid-19), muitos de nós perdemos pessoas próximas e importantes em nossas vidas.
O fato de ter sobrevivido a esse período pode causar muitos transtornos, incluindo a síndrome do sobrevivente, principalmente para quem perdeu a mãe ou o pai, por exemplo. Nesse tipo de situação é comum a pessoa não saber como lidar com a morte de seu ente querido.
A culpa por ter sobrevivido enquanto seu ente querido faleceu pode ser um sentimento que prevalecerá e muitos questionamentos podem surgir, tais como: por que eu sobrevivi e meus familiares não? Ou por que comigo e não com outra pessoa?
Quando esse tipo de questionamento fica muito presente na vida da pessoa e ela não consegue resolvê-lo, o luto pode se tornar muito mais complicado de se lidar. Dependendo do caso, ele pode se tornar patológico, o que ainda torna possível desencadear um quadro de depressão.
Portanto, é importante ficar atento aos sinais de síndrome do sobrevivente, que são: ansiedade, perturbação do sono, isolamento social, alterações de humor e pensamentos negativos.
O luto carregado de culpa por estar vivo e a síndrome do sobrevivente
O luto carregado de culpa por estar vivo pode ser a síndrome do sobrevivente e a pessoa muitas vezes nem percebe. Duas grandes tragédias ocorridas em um intervalo de tempo muito curto transformaram a vida da psicóloga Fabiana de Lima Freitas, de 42 anos.
Seu marido morreu de câncer em julho de 2019. Mesmo sabendo racionalmente que a culpa não era sua, já que se dedicou ao tratamento com muito afinco e amor, ela disse que carregou sentimentos de culpa pela morte de seu amado.
Ela acabou achando que poderia ter feito mais, poderia ter dado mais atenção a ele durante o tratamento, dentre outras coisas. Contudo, isso são sentimentos que demonstram o quanto ela estava se culpando por algo que não estava a seu alcance.
Entretanto, quando a dor da perda da psicóloga parecia estar mais amena, começou a pandemia da Covid-19 no mundo e, no início do ano de 2020, ela acabou perdendo seu pai para o vírus. O comerciante Ilson Boaventura de Lima, de 68 anos, faleceu em decorrência de complicações da Covid-19.
Com isso, os sentimentos de culpa e tristeza voltaram a fazer parte da rotina de Fabiana. Ela conta que pensava, “porque não o levamos ele antes para o hospital?”. Esse pensamento angustiante tomava conta de sua mente.
O luto e a culpa
No caso de Fabiana é bem provável que seu estado esteja relacionado com a síndrome do sobrevivente. A psicóloga clínica e organizacional, Bianca Machado, diz que mesmo a síndrome não sendo formalmente reconhecida e catalogada no DSM5 (5º Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), ela acarreta a sensação de culpa por continuar existindo depois que se perde alguém próximo.
Para se ter uma ideia, a síndrome do sobrevivente não é um conceito novo, pois ela foi descrita pela primeira vez na década de 1960, quando especialistas observaram o comportamento de pessoas sobreviventes do Holocausto e seus descendentes.
De acordo com especialistas, a síndrome se manifesta, principalmente, em sobreviventes de grandes tragédias, mas ela pode aparecer também em após lutos isolados. O principal sentimento existente é o da culpa pela morte de pessoas queridas e também pelo fato de ter sobrevivido a alguma tragédia que tirou a vida de alguém próximo.
O psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (SP), Daniel Martins de Barros, conta que do ponto de vista clínico, a síndrome do sobrevivente não é uma condição. Ou seja, não é uma doença, mas uma vivência que algumas pessoas passam.
Não se trata exatamente de uma patologia. Sabendo disso, o que se deve fazer é prestar atenção nos sentimentos para poder entender a dinâmica desse processo e quais as razões de estar sentindo culpa.
De acordo com Barros, é comum algumas pessoas não se sentirem merecedoras de estarem vivas enquanto seu ente querido está morto. Caso esse quadro evolua, ele pode trazer consequências mais complicadas durante o luto, levando até mesmo uma pessoa à depressão.
Consequências da síndrome do sobrevivente
As pessoas que sentem a angústia da síndrome do sobrevivente podem ser acometidas também por outros sintomas, como dor de cabeça, insônia, perturbações, crises compulsivas de choro e alterações bruscas de humor.
Esses aspectos podem tornar o período de luto muito dolorido e complicado. “Por isso, é importante dar a devida atenção aos enlutados que apresentam essas características e sintomas”, afirma Machado.
Algumas pessoas podem apresentar características como: desejo de ter ido no lugar do falecido, enfoque nos pontos negativos e de possíveis negligências durante o tratamento, indo até a idealização de suicídio.
Em todos esses casos, é importante ter a ajuda de um profissional especializado em saúde mental para orientar o enlutado da melhor forma possível.
O desafio do luto em tempos de pandemia
Em tempos de pandemia a vivência do luto acaba se tornando um cenário ainda mais desafiador e complicado. “Diante do falecimento de pessoas em decorrência da pandemia, outros fatores podem piorar o sentimento de perda”, afirma Machado.
A impossibilidade de estar presente no ritual de despedida pode ser um agravante na experiência do luto. A proibição dos funerais tradicionais podem deixar um vazio e uma sensação de que não foi possível se despedir de seu ente querido.
“A pior sensação é você perder alguém que ama e nem sequer poder ver, fazer um velório”, diz Fabiana sobre a despedida de seu pai. Além disso, ainda é preciso lidar com todas as questões emocionais e burocráticas referentes ao falecimento de uma pessoa. Ainda de acordo com Fabiana, o contato e apoio social são de extrema importância, mesmo sem o contato físico.
Machado afirma também que é de grande importância para o enlutado poder contar com uma rede de apoio de amigos e parentes nesse período de luto que se disponibilizem a ajudar, nem que seja como ouvinte.
A assistente social e autora do livro “Algumas Histórias Sobre o Luto”, Márcia Torres, conta que a perda de familiares em tempos de pandemia está causando sentimentos muito peculiares nas pessoas. Márcia é coordenadora do grupo de apoio a enlutados e o projeto “A Vida Não Para”, no Crematório e Cemitério da Penitência, ambos na cidade do Rio de Janeiro.
De acordo com a assistente social, os sentimentos das pessoas nesse período de perdas variam muito. Alguns ficam revoltados com aqueles parentes que não obedeceram ao isolamento social, outras ficam pensando que se tivessem ficado totalmente isoladas não haveria morte na família. Contudo, os sentimentos variam de acordo com cada um e é sempre importante ficar atento aos sinais para não sofrer mais do que deveria e desenvolver a patologia da síndrome do sobrevivente.